O doce sabor da vingança
Carros, máquinas em geral, movidos a gasolina ou produzindo armas e munições – esta é a última “posse” dos representantes da raça humana (porque nem sempre podem ser chamados de pessoas) no mundo distópico autodestrutivo de George Miller. Assim começou (e se desenvolveu) a trilogia Mad Max na década de 1980. Seguiu-se uma “calmaria” de trinta anos. E quando Fury Road foi lançado em 2015, pelo menos duas gerações de espectadores já haviam mudado, acostumados à corrida por efeitos especiais, desafios espetaculares e à crença das grandes empresas cinematográficas de que o público precisava de quantidades infinitas de ação, violência e apocalipse…
Primeiro os indivíduos mudam, depois as batalhas “evoluem” e a paisagem desértica imperceptivelmente despovoada já não se assemelha à civilização que conhecemos. No início de Mad Max: Fury Road, a água é um luxo ao qual não devemos nos viciar, os privilegiados são os “meninos da guerra” (um cruzamento visual entre zumbis e orcs) e os desobedientes são os doadores de sangue. O domínio sobre (o que resta) do mundo e o desejo pela imortalidade são evidentes. A necessidade de rebelião é muitas vezes ditada por uma sede de vingança – a multidão ressecada, esfarrapada e sem nome, olhando “predatoriamente” para as cisternas de água, não parece ser objecto de libertação nacional. A quarta parte da saga é refrescante no seu cinismo e implacavelmente adequada aos tempos em que vivemos. Porque Mad Max vai muito além da ficção de ação pós-apocalíptica e consolida cada vez mais seu status como uma fábula filosófica distópica.
Nesse ponto da narrativa, o diretor faz uma digressão lírica para apresentar aos fãs o passado do Comandante Furiosa. Será porque a personagem se revela muito interessante e merece um enredo independente, ou porque proporciona uma oportunidade de reabilitar o estatuto da mulher, reduzida a objecto e máquina de produção de senhores da guerra dentro dos limites da Cidadela? Deixaremos o populismo politicamente correto para os produtores de Hollywood e nos concentraremos nos benefícios da representação feminina igualitária no épico de Miller, um oásis sobrevivente de imaginação desenfreada no contexto de franquias repetitivas de grande sucesso.
Sequela, prequela e spin off da série “Furiosa: A Saga Mad Max” é um faroeste pós-apocalíptico de excelente qualidade, um estilo narrativo magistral e um universo próprio cuja riqueza nunca deixa de impressionar. A menina sequestrada no Green Place sobrevive às mãos da Horda de Motociclistas e se torna uma jovem que trabalha disfarçada de homem no “departamento de transporte” da Cidadela. Esperando o momento certo para se vingar… Na atuação de cada uma de suas agora três atrizes, Furiosa é inspiradora, ao mesmo tempo uma potencial parceira de Max, mas também seu oposto em termos de altruísmo e esperança imorredoura.
George Miller é um contador de histórias em imagens que mantém o diálogo no mínimo e brinca com a câmera para construir um mundo tecido de ação e simbolismo em que nenhum detalhe é arbitrário. Sua direção é subserviente à ética do faroeste à moda antiga e, sem perder de vista a trama, ele aproveita todas as oportunidades para aprofundar a trajetória de seus personagens. Como costuma acontecer no trabalho de Miller (ele passou de Mad Max a The Witches of Eastwick (1987) e depois de Merry Feet (2006) de volta a Mad Max), no epicentro da história está o desejo de contar um mito. Em Furiosa, essa abordagem é direcionada ao anti-herói, interpretado por Chris “Thor” Hemsworth com uma teatralidade deliberada que combina perfeitamente com a imagem de um vilão hedonista e esbanjador, charmoso e infantil. Dementus é um roqueiro megalomaníaco alimentado por ambições de conquista de estilo antigo, magnéticas e complexas, com atos de estupidez que o colapso da civilização torna aterrorizantes. Hemsworth, com visível prazer, se transforma em um canalha atraente que anda em uma carruagem romana puxada por motocicletas, tem um ursinho de pelúcia amarrado no cinto e se veste como um messias de motocross. Num mundo revertido aos seus primitivos instintos de sobrevivência, a sua masculinidade é tão desenfreada quanto a imaginação do autor.
Quarenta e cinco anos após o lançamento do primeiro filme, o diretor australiano conhece os menores códigos, regras e recantos de seu universo distópico. Como Fury Road (lembra daquela cena no início de Runaway Housewives onde a guitarra cospe fogo no metal e nos sons do metal?) Furiosa é uma tela viva sobre a qual Miller pinta sem inibição, substituindo os traços do pincel por câmeras extremamente expressivas e enérgicas. movimentos, violência operística, corpos e máquinas correndo a toda velocidade até o último suspiro (ou rosnado). Para além da busca pela vingança, para além do caos e da loucura que emana de cada imagem, uma das principais ideias que alimentam a nova adição à série é o efeito da passagem do tempo num mundo de desordem onde já não tem sentido nem significado…
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